Joaquim Itapary: Um olhar de menino e uma eterna metáfora de vida

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Publicado na Revista Pergentino Holanda. N• 2175. Ano XLV 

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Alguém me fala que, depois de longo afastamento, reencontrou-se com uma esquecida fé, e desde então certos tropeços que a vida lhe aprontou foram perdendo a coloração dramática de que pareciam revestir-se.
Não duvido. Estive outro dia no Santuário de São José de Ribamar, curiosamente em pagamento de uma promessa alheia, e me comoveu ver tantas pessoas confiando ao vigário da paróquia íntimos requerimentos e esperanças.
Sou um católico relapso, confesso. Não vou à missa com muita frequência, não confesso nem comungo uma vez por ano, acho que ninguém me tomaria por um modelo de virtudes evangélicas. Mas algumas das horas mais tocantes de minha existência transcorreram no interior de igrejas. As cerimônias da Sexta-Feira da Paixão, em Presidente Dutra, me emocionavam por sua plástica sombria. Aquelas orações em bom e velho latim, aquelas imagens aprisionadas sob mantos violeta, a contrita visitação ao Senhor Morto pela delegação dos proscritos – das chamadas mulheres de vida airada às demais ovelhas desgarradas do aprisco – incendiavam e enterneciam minha imaginação.
Num domingo inaugural em Paris, fui à Catedral de Notre Dame. O canto gregoriano estremecia os vitrais, recriava-se glorioso o ritual do Sacrifício – e se o denomino assim é porque, num fugidio, mágico instante, senti a presença de minha mãe, ali tão docemente próxima, ali tão definitivamente para sempre exilada de mim.
Há perto da Via Appia, em Roma, uma capela humilde. É órfã de majestade e esplendor. Não se deparam ali brilhos nem requintes. Mas tem no chão uma pedra. Nela se acham gravados os passos do Filho de Deus, pobres e descalços, como se mantiveram através da poeira dos milênios, a partir do momento no qual, de acordo com a lenda, surpreendeu Pedro em fuga e lhe perguntou: Quo vadis?
Volta e meia penso que, no Juízo Final, quando pesarem numa balança meus numerosos pecados e meus escassíssimos méritos, Pedro em pessoa será meu advogado.
– Deixem esse aí entrar – dirá. – Ponham ele em algum recanto de sonhadores. Pois atesto e juro que, numa tarde de dezembro, o vi ante o presépio armado na Praça da Matriz, em Presidente Dutra, contemplando a cena com um olhar de menino.

 

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Há mortos e mortes – na Literatura e na vida real –, por conta de obras de arte ou de artistas do humor negro. Na vida real, há os eleitores “mortos”, que não deixam de comparecer às urnas. E na velha oligarquia do poder, houve o fictício (mas tão real) “patriarca” de Gabriel García Márquez. Vivia “morrendo” e sendo picado pelos urubus – mas não deixava de governar “como se estivesse predestinado a não morrer jamais”.
Houve, na literatura de Jorge Amado, A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, assim como a célebre morte do primeiro marido de Dona Flor – o bom vivant Vadinho, que passou a frequentar a cama de sua própria viúva, partilhando-a com o novo marido, vivo, mas “corno” de um defunto…
E houve os mortos-vivos de Érico Veríssimo, em Incidente em Antares, com destaque para a morte do coronel Tibério Vacariano, o chefe político local.
Na Ilha de São Luís, anos 1970, aconteceu a morte de Erasmo Dias, um intelectual e ex- deputado estadual, que ouviu no rádio o anúncio fúnebre do seu próprio óbito. O anúncio teria saído na rádio Timbira, bancado pelos próprios “amigos” do morto:
– A família e os amigos de Erasmo Dias, ainda consternados com o seu prematuro falecimento, ocorrido às 22h de ontem, convida familiares e pessoas amigas para a cerimônia dos seus funerais, a ter lugar na capela do Cemitério do Gavião, às 16h de hoje.
Uma “peça” montada pelos “patifes” do Senadinho da Praça João Lisboa, ou pela turma irreverente do Moto Bar.
Os efeitos não tardaram a aparecer. Mal se acostumara à condição de “morto” – e o telefone já tocava:
– É o Erasmo…?
– Eu mesmo! E estou bem vivo, seus filhos da p….!
Passou a manhã inteira se escondendo, até que criou coragem, resolveu sair de casa para “enfrentar” a própria morte.
Por incrível que pareça, foi-lhe até agradável. Erasmo pôde sentir o quanto era querido pelos verdadeiros amigos, que deixavam o queixo cair de puro espanto, correndo para abraçá-lo com efusão:
– Erasmo, então quer dizer que estás vivo? Vivo!?
E ele, satisfeito:
– É. Foi só uma mortezinha à toa…
O episódio teve lá a sua graça, mas a indesejada senhora pode se tornar querida. É o que sugere o romance do português José Saramago, As Intermitências da Morte, que relata uma inédita greve da dama das trevas. Num país imaginário, as pessoas simplesmente param de morrer. Todos sobrevivem a acidentes de trânsito, tentativas de homicídio, desabamentos e doenças. Ficam estropiados, sofrem, entram em coma, mas não partem. A população entra em pânico, os governantes ficam confusos, há um abalo na economia e os religiosos, que vendem o seu peixe em troca da ressurreição, revoltam-se contra as autoridades.
Mas quem pode fazer alguma coisa? A causadora de todos os transtornos, embora seja a mais democrática das criaturas – juíza isenta e lúcida, que não se deixa subornar nem iludir, incorruptível, absolutamente equânime nas suas escolhas, campeã da igualdade –, é também uma déspota. Não dá satisfações para ninguém, nem nas suas ações nem nas suas omissões.
Caçadora paciente e perseguidora implacável, acompanha-nos desde o primeiro dia da nossa existência, à espera do encontro que só ela marcou. Há quem a rejeite de forma absolutamente radical, como uma outra dama amargurada que assim se manifestou: “Acho a morte tão horrível que odeio a vida por me conduzir a ela”. Há, porém, quem a ame de verdade, como o poeta que diz: “Louvada a morte, que nos faz irmãos”.
Pretensiosamente, contraponho-me aos dois: Louvada a vida, que nos conduz ao amor.
A verdade verdadeira é que só morrem os que são amados, pois a rainha dos desígnios insondáveis tem o poder de deixar na alma
daqueles que ficam uma tatuagem indelével chamada saudade.

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Na fábula de La Fontaine, se bem me lembro, um velho lenhador escorrega e deixa cair o pesado feixe que carregava. Indignado, pragueja:
– Que vida desgraçada. Melhor seria a morte!
Pimba. Aparece diante dele a velha senhora, com a sua conhecida indumentária e o inconfundível instrumento de trabalho.
– Chamou? Chamou?
Apavorado, o homem sai pela tangente:
– Sim, para que me ajude a colocar novamente a lenha às costas.
Tem lá a sua graça, mas a indesejada senhora também pode se tornar querida. É o que sugere o romance do português José Saramago, As Intermitências da Morte, que relata uma inédita greve da dama das trevas. Num país imaginário, as pessoas simplesmente param de morrer. Todos sobrevivem a acidentes de trânsito, tentativas de homicídio, desabamentos e doenças. Ficam estropiados, sofrem, entram em coma, mas não partem.
A população entra em pânico, os governantes ficam confusos, há um abalo na economia e os religiosos, que vendem o seu peixe em troca da ressurreição, revoltam-se contra as autoridades. Mas quem pode fazer alguma coisa? A causadora de todos os transtornos, embora seja a mais democrática das criaturas – juíza isenta e lúcida, que não se deixa subornar nem iludir, incorruptível, absolutamente equânime nas suas escolhas, campeã da igualdade –, é também uma déspota. Não dá satisfações para ninguém, nem nas suas ações nem nas suas omissões.
Caçadora paciente e perseguidora implacável, acompanha-nos desde o primeiro dia da nossa existência, à espera do encontro que só ela marcou. Há quem a rejeite de forma absolutamente radical, como uma outra dama amargurada que assim se manifestou: “Acho a morte tão horrível que odeio a vida por me conduzir a ela”. Há, porém, quem a ame de verdade, como o poeta que diz: “Louvada a morte, que nos faz irmãos”.
Pretensiosamente, contraponho-me aos dois: Louvada a vida, que nos conduz ao amor.
A verdade verdadeira é que só morrem os que são amados, pois a rainha dos desígnios
insondáveis tem o poder de deixar na alma daqueles que ficam uma tatuagem indelével chamada saudade.

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Gratidão especial ao escritor sambentuense Joaquim Salles de Oliveira Itapary, que desde o último domingo transformou a si mesmo em eterna metáfora de Vida
O mundo seria pequeno demais, tosco demais, árido demais, rústico demais, absurdo demais, selvagem demais, angustiante e opressor demais, infeliz demais, triste demais, pesado demais, impraticável e sem sentido se não fosse a Poesia. A Poesia é o sopro que areja a existência de tudo, é o bálsamo que lubrifica o atrito entre as engrenagens que compõem o mundo, é a panaceia vital capaz de permitir o fluir da seiva intangível que confere, se não sentido, pelo menos o conforto e o aconchego necessários para que o peso do existir tenha leveza e possa alçar do solo duro os pés que, então, ganham como que asas. A Poesia permite voar e transcender as limitações do corpo, tocando sutilmente os intransponíveis limites da eternidade.
A Poesia redime a Vida e domestica a Morte, já que esta não pode ser vencida. Domestica e ludibria, porque, a partir de seus frutos, que são as Artes, consegue manter viva a chama do Poeta por meio da permanência de suas Obras na Memória coletiva. Enquanto houver quem cante o canto do Poeta, enquanto houver quem leia suas linhas, quem contemple suas telas e esculturas, quem escute a sua música e a sua voz, quem assista às suas encenações e produções visuais, quem viaje em suas fotos, quem reflita sobre suas propostas, a finitude seguirá sendo protelada e o pulsar da Vida continuará achando caminhos para fluir como sangue vital por veias infinitas.
A Poesia não se extingue junto com o último suspiro do Poeta. Justamente por ter sido Poeta é que ele consegue erigir em vida um castelo sólido de tijolos de brisa, amalgamado na argamassa da criatividade e da inspiração, fundeado nas entranhas da alma e, por isso mesmo, inabalável, irredutível e indestrutível.
O castelo da obra do Poeta permanece e permanecerá, porque foi construído em Poesia, a mais perene e sólida matéria já concebida pelos deuses, pelos anjos e pelos homens. O Poeta se vai e dele sentiremos imorredouras saudades. Mas amaciaremos essas saudades contemplando a existência que fica, amparados pela Poesia que o generoso Poeta nos deixa de legado. A ele, portanto, teremos sempre graças a dar. Temos de ser gratos aos Poetas, de todas as Artes.

 

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Aliás, mais triste, impossível! Foi assim que iniciei a ultima semana de julho, quando acordei com a triste notícia da partida do meu querido amigo Joaquim Itapary.
O Maranhão perdeu um grande homem, um intelectual completo, de conhecimento vasto e dono de um texto primoroso. O Maranhão perdeu uma figura pública exemplar. A literatura está menor neste crepúsculo de julho. Eu aqui, ainda me recuperando de um ligeiro mal-estar num leito de hospital, também me sinto menor e lamento não me ter sido possível participar das cerimônias de despedida de Joaquim.
Uma dor imensa, uma saudade de irmão. Sim, eu e Joaquim somos amigos de uma vida inteira. Nossas famílias sempre caminharam juntas, conectadas espiritualmente. Nunca houve um dia em que não trocássemos algumas palavras pelo telefone. Nunca houve um dia em que ele não me enviasse uma mensagem pelo Whatsapp. Pra falar sobre a gente, sobre o Maranhão, sobre o Brasil, sobre o mundo. Pra falar sobre Edna. Pra falar das saudades de minha mãe Zazá.
Trabalhamos juntos, dividimos experiências jornalísticas e literárias, frequentamos festas, trocamos conselhos, observamos a política, divergimos em alguns momentos. Mas nunca perdemos o respeito, a cumplicidade e a fraternidade que nos uniam desde a juventude. Submetíamos nossos textos um ao outro, sem qualquer pudor, antes de levá-los a público.
Haveria muito mais a dizer sobre a nossa amizade e a nossa convivência. Sobre o que vimos e ouvimos ao longo de mais de meio século. Mas fico por aqui, com o coração partido.
Em oração, junto-me à sua amada esposa Edna e aos seus filhos Marcelo, Maurício e Márcia. Que Deus receba o meu estimado amigo- irmão Joaquim Itapary na sua morada eterna.